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A vida social e política está cheia de mitos. Achamos erradamente que os mitos são elementos interpretativos das sociedades tradicionais, estando o mundo ocidental contemporâneo assente no racionalismo e na ciência. Ora, a realidade mostra que vivemos de mitos, idolatrias e falsos mandamentos que nos aproximam das históricas e místicas conceções tradicionais do mundo.

Quem já viu o filme “Os deuses devem estar loucos” percebe o papel mitológico da garrafa de coca-cola para a pacata tribo do diligente Xi. Atualmente, algumas garrafas caídas do céu têm tentado assumir um totalitarismo interpretativo que ilude gente, monta fanatismos e interpreta o mundo com argumentário político que parece transparente e rigoroso, sendo apenas populista e panfletário.

Muitos desses mitos assemelham-se a uma gangorra, indo e vindo como o kantiano circuito diário. Mas são perigosos: iludem ser rigorosos, quando são psicóticos, disfarçam ser transparentes, quando são panfletários e parecem ser neutros, quando têm subjacente um projeto de perigosas tretas.

É o que tem acontecido com as alegadas redes na política, tidas como fatores de ocultismo e de promiscuidade. Um agente político não pode ter religião, porque isso pode perverter a sua ação; não pode ter clube, porque isso pode levar a dúbias condutas; não pode ter um relógio novo, porque isso é sinal de fausto. E, mais do que tudo, não o pode assumir. Enfim, até pode ter religião, mas não deve ir à missa, muito menos comungar; até pode ter clube, mas não deve ir à bola, muito menos ser membro do conselho consultivo; até pode ter relógio novo, desde que seja plástico.

A procura do político “raça pura” só tem dado asneira. Que melhor transparência e forma de controlo público do que sabermos quem somos e o que fazemos? Dizem que não têm religião e rezam entre colunas; dizem que não têm clube e vendem favorecimentos como fatores desenvolvimentistas; não compram o relógio, mas viajam a locais longínquos, próximos do offshore. Aliás, há muitos básicos a discutir incompatibilidades para ver se assim há lugar para eles.

Um jornalista profissional pode comentar desporto como se fosse uma ciência, ao mesmo tempo que tribaliza o momento do golo com paixão. Um político não pode ter gostos nem filiação.

Sempre ouvi que o pior dos inimigos é o desconhecido. Um padre pode assumir que gosta de política, um político pode gostar de futebol e ambos podem adorar corridas de automóveis. Isso não diminui ninguém. Que melhor controlo público do que a informação? Se eu sei que um padre gosta de política, estarei mais atento às subtilezas das suas homilias; se eu sei que um político gosta de futebol, estarei mais atento às suas decisões.

Pior será quando nos quisermos encerrar todos nas respetivas redomas, isolando os respetivos mundos e criando vãs ilusões de pureza. Nessa altura, teremos que deixar os lugares públicos aos asséticos. Sem crenças nem gostos conhecidos, farão da vida pública um palco de encenações e de artificialismos, tornando as pessoas, não cidadãos, mas meros espetadores.

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Eduardo Rodrigues

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