Em 2016, foi publicado um trabalho histórico de grande fôlego, da autoria do professor Ian Kershaw, da Universidade de Sheffield, intitulado “À beira do abismo”, onde se explica a dimensão psicossocial das decisões de Hitler.
De facto, o ditador alemão, de ascendência austríaca, foi um jovem marcado pela derrota militar da Alemanha na Primeira Guerra Mundial e pelas sanções pós-guerra, consideradas humilhantes pelos alemães. Simplificando, sentia-se Hitler no papel histórico de recuperador do orgulho alemão e de restaurador das forças alemãs e do seu papel na Europa e no Mundo.
De facto, no verão de 1914, a maior parte da Europa embrulhou-se numa guerra tão duradoura e catastrófica, cujas consequências ainda hoje parecem estar vivas. O desastre humanitário generalizou-se e aterrorizou os países e as pessoas, as instituições desacreditaram-se aos olhos dos cidadãos e as consequências do pós-guerra foram proporcionais ao desastre e às sanções aos derrotados. Em 1939, os europeus iniciaram um segundo conflito ainda maior, acentuado por anos de revolta de elites alemãs, convictas de herdarem um karma de reposição da verdade ou de ajuste de contas, conforme a perspetiva. Era evidente o sentimento de injustiça e de humilhação aos alemães, abrindo campo para o surgimento de vingadores ou de retratadores. Hitler corporizou essa fantasia, dando moral bélica e ideológica ao extremismo alheio.
Esta obra surge cerca de dois anos depois dos ataques da Rússia à Crimeia, território ucraniano, que passaram maioritariamente despercebidos aos ocidentais. Disse Durão Barroso, recentemente, que o Ocidente terá desvalorizado os perigos alvitrados por Putin na avaliação das consequências políticas, geoestratégicas e socioeconómicas da dissolução da (artificial) URSS. Putin, tal como Hitler, sente-se investido do papel supremo de reposição da ordem histórica e de recompositor do império destroçado.
Ao mesmo tempo, vários autores seguiram os testemunhos de Alois Maria Ott, o professor das prisões, que explicou o que encontrou na abordagem a Hitler: ódio, vingança, um psicopata incapaz de ultrapassar as agruras da vida e de fazer valer o valor da tolerância e do perdão face ao ódio e à vingança.
Outros autores assumiram uma explicação mais próximas da dimensão psicológica ou psicótica de Hitler, como Eberle e Neumann, em “Was Hitler Ill? A final diagnosis”, Cambridge, Polity Press, 2012, ou a obra de Ross, “The year that made Hitler”, editado em 2016 pela Little, Brown and Company.
É certo que outros procuraram explicações mais personalizadas, como o conhecido artigo publicado no “The Guardian”, em dezembro de 2015, “Hitler really did have only one testicle, german research claims”, abordando a explicada criptorquídia do ditador.
A verdade é que as dinâmicas históricas não podem prescindir do conhecimento das dimensões psicossociais dos seus líderes, muitas vezes autoassumidos como investidos da proteção divina ou da justiça providencial.
Percebendo muitas destas dimensões, perceberemos o massacre criminoso da Rússia sobre a Ucrânia nos tempos atuais.
Presidente da C. M. Gaia e da Área Metropolitana do Porto